Paraíso agora: o Oriente entre Deus e o Homem

(Paradise Now, Hany Abu- Assad, 2005, França, Alemanha, Israel)
“Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no
espaço”...
... E
duas ideologias?
O filme Paradise Now, dirigido pelo diretor palestino Hany Abu-Assad conta a história de dois amigos palestinos, que vivem na margem ocidental da cidade de Nablus e que são escolhidos para realizar um ataque suicida em Tel Aviv. O pano de fundo já é bem conhecido, posto que já fora mais do que colocado em pauta pelos cadernos de política internacional dos jornais e pelas imagens espetacularizadas da televisão: o universo cindido de palestinos e israelenses, o fundamentalismo religioso, homens capazes de detonar a vida em nome de crenças que há muito tempo o mundo ocidental já enterrou.
O filme de Assad, no entanto, como obra de arte que é, tem a função de dar espessura e densidade a esse cenário assustador e aos personagens reais que nele atuam. O que vemos não são simplesmente homens barbudos, detonando maquinalmente bombas em metrôs e prédios em nome sabe-se lá de que, mas seres humanos com seus universos interiores destroçados, transitando em um mundo em ruínas, desorientados ideologicamente, capazes de cometer atrocidades por conta dessa desorientação.
O personegem central Sayd é a personificação desse conflito que coloca israelenses e palestinos em lados opostos e inconciliáveis. De um lado, Israel, um mundo de ruas asfaltadas, arranha-céus, personagens de terno e gravata indo de casa para o trabalho, do trabalho para casa, uma nação de ideais capitalistas acima de qualquer rigor religioso. Do outro, uma nação que não é nação, posto que não separou até o momento Igreja de Estado, que não colocou o homem no centro do universo e, dessa forma, é capaz de colocá-lo não a serviço da vida e de sua própria espécie, mas antes de qualquer coisa, a serviço de Deus.
Vemos a Tel Aviv antropocêntrica com seus prédios altos e carros novos contrastar drasticamente com uma Cisjordânia de construções caindo aos pedaços, perfuradas por balas. A intenção de Assad, entretanto, não é carregar o telespectador com informações objetivas com relação ao conflito político vivido por árabes e judeus, mas sim trabalhar a subjetividade desses personagens reais utilizando esses cenários como forma de ilustrar um estado de espírito e provocar um sentimento no telespectador.
Até porque a questão central em Paradise Now é outra. O personagem principal Sayd é um jovem palestino que teve o pai assassinado por ter colaborado com Israel, fator que institui um problema de pertencimento no cerne da construção de sua identidade.
A que mundo Sayd pertence? A Israel? ao mundo Ocidental, ao qual seu pai serviu e do qual veio a francesa por quem está apaixonado? Ou ao país em que nasceu? O mundo de sua mãe e de seu amigo de infância Khaled que, ao contrário dele, não tem dúvidas quanto a nobreza da missão que foi designado a cumprir?
Atravessar ou não o muro? Detonar ou não a bomba? Escolher Deus ou o Homem? Pois é, precisamente, disso que se trata.
Porque uma coisa é acreditar em Deus, mas outra, totalmente diferente, é invalidar o Homem. E até que ponto é permitido a alguém acreditar em Deus em um mundo que precisa de quem consuma carros, moda, coca-cola e, em suma, todas as coisas que foi o Homem e não Deus quem fez?
Paradise Now é, antes de qualquer coisa, um filme sobre os conflitos de identidade de um grupo de indivíduos que não sabe mais se deve acreditar em Deus ou no Homem. Pois quando se sabe o que existe do outro lado do muro, há sempre a chance de optar. E a verdade é que sempre se sabe, de uma forma ou de outra.
É muito provável que, no momento, muitos palestinos, cisjordanos, libaneses estejam vivendo sob esse conflito. Colocar essa questão é o maior dos méritos desse grande filme.

Os Estranhos

(Bryan Betino, EUA, 2008)

Em Os Estanhos, o estreante diretor texano Bryan Betino realiza uma direção competente, rendendo bons sustos ao telespectador ávido por diversão e brindando o público cinéfilo com uma referência explícita ao filme do diretor austríaco Michel Heneke, Violência Gratuita (Funny Games).

Betino mostra que sabe filmar bem. Consegue usar o roteiro a favor do filme, utilizar o som de maneira inteligente, escolher bem seus cortes e, dessa forma, construir um jogo de olhares que consegue manter a tensão durante quase todos os momentos da projeção.
O argumento do filme não é, em si, original. Mas essa pode ser uma escolha consciente de quem opta por tirar proveito das possibilidades- temáticas e formais- que determinado gênero oferece. Com Os Estranhos, Betino opta, simplesmente, por fazer um filme de suspense ao modo clássico.
Uma narrativa óbvia mostra James (Scot Speedman) e Kristen (Liv Tyler), um casal que, depois de uma situação de crise, vai passar uma noite na casa de veraneio dos pais de James, em um subúrbio completamente isolado, no Texas. Dada essa situação, sabemos o que vai acontecer dali pra frente. No entanto, Betino consegue criar uma atmosfera com densidade, agregando o sentimento da crise vivida pelo casal à tensão da perseguição.
Kristen acabara de recusar um pedido de casamento de James e, por conseqüência, os dois encontram-se melancólicos e monossilábicos. Speedman desempenha uma boa interpretação, mostrando-se, simultaneamente, abalado pelo sentimento de ter sido desprezado e pela tensão da ação. Ponto para Betino, que consegue construir uma narrativa em camadas, na qual a interioridade dos personagens não desaparece em meio às ações, mas, ao contrário, funde-se a ela, potencializando o efeito dramático da narrativa.
O trabalho com o som também é um ponto forte. Distanciando-se de uma utilização gratuita e exagerada dos efeitos sonoros, na qual o cinema hollywoodiano é mestre, Betino usa o som de forma pensada, explorando o invisível através de ruídos sugestivos e trabalhando de uma forma eficiente o espaço fora da tela. O bater de uma porta, o som da vitrola, um toque de celular, todos surgem de forma justificada, sem carregar desnecessariamente a faixa sonora da película.
Em Os Estranhos há um esforço bem sucedido em se trabalhar com índices, vestígios. É a imagem de uma janela quebrada, de uma máscara atrás do vidro, de uma mancha de sangue na parede que irá fornecer ao telespectador os significados necessários para compor o sentido do filme.
Dessa forma, o estreante diretor mostra conhecer bem o gênero com que está trabalhando e dele tirar o proveito possível. A construção do olhar engendrada por uma decupagem consciente mostra que Betino entendeu bem as lições do grande mestre do suspense, Alfred Hitchcok. São os ângulos nos quais decide posicionar a câmera, conjugados aos cortes nos momentos oportunos que mantêm a atenção do telespectador, sem que seja preciso recorrer à "violência gratuita".
Daí parecer, em certo sentido, ambígua a referência que faz ao filme de Heneke. Pois por mais que seja clara a inteção em fazer um trabalho de intertextualidade cinematográfica, a forma de filmar do texano em Os Estranhos em nada se assemelha a do diretor austríaco.
As referência a Funny Games são diversas e vão desde as mais sutis como a semelhança do argumento, no qual os malfeitores não tem qualquer motivação para perpetrar seus atos de violência (torturam psicológica e fisicamente suas vítimas simplesmente porque estavam sem nada para fazer e os dois "estavam em casa") até a mais explícita, na qual dois moleques com cara de psicopata fazem uma aparição sem qualquer função no roteiro, apenas para fazer referência aos dois protagonistas mafeitores de Funny Games. Sem contar, ainda, com o trabalho de diegese em cima de musiquinhas pertubadoras que saem de uma vitrola e uma ida de James ao celeiro com uma espingarda, exatamente como faz o filho do casal no filme de Heneke.
É dessa forma que Os Estranhos, unindo uma homenagem- talvez seja mais correto chamar assim- a um filme polêmico sobre a violência, às lições daqueles que nos mostraram que sugeri-la ao invés de mostrá-la pode ser muito mais interessante, faz um filme que pode agradar a diferentes públicos.

Cinema e pintura: Murnau e Caravaggio

1. INTRODUÇÃO

Esse trabalho pretende realizar uma distinção entre o conceito de luz no Cinema e na pintura, utilizando como objetos de análise os quadros do pintor italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571- 1610), nos quais empregava a técnica do chiaroscuro[1] e dois dos filmes do cineasta alemão F.W. Murnau (1888- 1931), A Última Gargalhada (Der Letzte Mann), e Fausto (Faust).
Detectar na pintura e no cinema diferentes funções de representação da luz (simbólica e dramática), a partir de uma discussão sobre a natureza de cada um desses meios é o objetivo maior desse trabalho.

2. CINEMA E PINTURA: LUZ E COR
Se quisermos analisar, em paralelo, ou até mesmo comparar, traçar analogias entre Cinema e Artes plásticas é, antes, fundamental entendermos que quando falamos da maneira como um pintor utiliza a luz nos seus quadros ou de como a luz se apresenta como um elemento marcante em certo tipo de Cinema (tal como ficou conhecido o cinema expressionista alemão), estamos falando de coisas completamente diferentes.
Pode nos parecer bastante correto dizer que o expressionismo alemão é “um movimento de Cinema de caráter altamente pictórico” ou de quem em Fausto, Murnau “concebe uma atmosfera mística a partir dos contrastes de iluminação, que remetem a pintura de Rembrandt”. Esse tipo de comparação pode nos parecer, a princípio, bastante ilustrativa e esclarecedora. Podemos, por exemplo, inferir que Murnau utilizou, em seu filme, fortes contrastes de luz e sombra que se assemelhavam ao que fazia Rembrandt ao utilizar muito bem a técnica do chiaroscuro.
No entanto, quando fazemos esse tipo de comparação, automaticamente, esquecemos de uma coisa muito importante: de que Cinema e Artes plásticas são diferentes em sua essência e que, portanto, compará-los só pode funcionar a nível metafórico. E metáforas são extremamente válidas, mas não devem ser confundidas como denotadoras de um sentido real. Dizer que os filmes expressionistas são “como as telas de Caravaggio” é muito menos uma comparação do que uma metáfora.
Poderíamos escrever tratados infindos sobre distinções entre pintura e Cinema, elas são tão óbvias quanto numerosas. Mas a proposta aqui é diferencia-los a um nível estrutural. Até para que possamos justificar o que foi dito anteriormente.
Se pudermos reduzir ao mínimo e ali onde está o Cinema com sua iluminação, atores, objetos de cena, narrativa, edição, fazer restar apenas uma- sem a qual não existiria nenhuma das outras- poderíamos dizer que estaríamos diante da natureza do Cinema. E aqui não vou me alongar mais: experiências inusitadas como colocar uma câmera registrando durante 4 horas um edifício nos poupa o trabalho de procurar muitos exemplos na história do Cinema. E mesmo depois de uma valorização excessiva da montagem, já nos provou Hitchcock que se faz Cinema sem cortes. Mas nunca ninguém fez Cinema sem luz.
Se realizarmos o mesmo raciocínio em relação à pintura, nosso último sobrevivente é a cor.
E aqui chegamos a nosso primeiro ponto importante: No Cinema, a luz é um elemento estrutural, de caráter ontológico. Enquanto que na pintura é apenas um efeito, uma representação, tal como é o efeito da cor no Cinema. Portanto, toda vez que falamos de luz em um quadro, estamos falando de um caráter ilusório que, no entanto, é recalcado no enunciado. Na verdade, estamos falando da cor e de como essa ou aquela cor produz tal ou qual efeito de luz.

“A luz, no Cinema, está sempre ali, e até mesmo duplamente ali, já que a luz do projetor- a luz de depois do filme- serve para mostrar como a luz caía sobre as coisas filmadas- a luz de antes do filme... Só que o que é primordial em pintura não é evidentemente a luz, e sim a cor”.
É na relação com a luz que se percebe melhor o paradoxo plástico do Cinema: vítima de sua tecnicidade, ele apreende bem demais a luz, sem trabalho, para saber, de saída, trabalha-la. Fazer da luz um material plástico é, em pintura, uma necessidade”. (O OLHO INTERMINÁVEL- CINEMA E PINTURA, JACQUES AUMONT)

É por esse diferente caráter da luz na pintura e no Cinema que essa exercerá funções de representação, em geral, diferentes em ambas. Jacuqes Aumont, em seu livro já citado, aponta para os papéis simbólico, atmosférico e dramático da luz, associando, fundamentalmente, a pintura a esse primeiro e o Cinema a esse último.
No primeiro caso, “liga a presença da luz no quadro a um sentido que, no caso da luz, toca sempre o sobrenatural, o sobre-humano, a graça e a transcendência”. Seja representado o Divino, seja representando a Razão, a luz está, na pintura, associada a uma função simbólica que muito deve dizer a respeito do caráter inexorável que a luz assume ali de idéia, de representação.

No Cinema, essa função é transferida. A luz se desloca, ganha outro lugar. Deixa de ser mensagem para ser meio, deixa de ser fim para ser ferramenta. E como ferramenta, irá se alojar numa história da técnica. A Natureza fotográfica do Cinema inscreve a luz numa história da técnica, mas não lhe concede uma história do puro simbolismo. O cineasta não tem como escapar à luz. Restará a ele, única e simplesmente, disfarçá-la.

Torna-la real, natural, justificada, parte significante do universo que constrói. E como fazer isso da melhor maneira? É aí que entra a função dramática da luz no Cinema. Não podendo escapar a ela, deve aceitá-la. Mas com a descrição de quem está em paz com a sua própria natureza. E nisso Murnau foi um mestre. O cineasta alemão, certamente, entendia muito bem as leis do mundo da pintura (formou-se em história da Arte), mas era muito mais um cineasta-cinematográfico do que um cineasta-pictórico, alcunha que muitas vezes recebeu. Caravaggio não chegou a conhecer a fotografia e o Cinema, mas, sem saber, era um pintor cinematográfico.

É necessário apresentar melhor nossos dois homens. Para, posteriormente, falarmos de como a luz exerceu caráter dramático na obra de ambos. Vamos reconhecer na obra de Caravaggio uma função, predominantemente, dramática ao invés de simbólica, através da utilização da técnica do chiaroscuro, da qual foi, certamente, um dos maiores representantes. Em Murnau, veremos a utilização simbólica da luz em Fausto, mas com a consciência devida de que aquilo no Cinema só poderia existir para tratar de um tema místico.


3. MURNAU

F.W Murnau é marcado pelo kammerspiel, cinema realista. Realismo, porém, que se caracteriza pelas ousadias narrativas e visuais, em virtude do privilégio atribuído ao movimento, seja dos elementos plásticos dentro do quadro, seja da câmera em si.

Como dissemos, o Cinema tem todo um interesse em disfarçar a luz. Ela deve parecer real, verossímil. Geralmente, não olhamos para um filme e pensamos: “Nossa, que filme realista”. Mas podemos, tranqüilamente, falar isso de uma pintura. Um filme de ficção pode nos parecer mentiroso, mas não irreal. Um quadro de Picasso pode nos parecer bonito, verdadeiro, mas nunca diríamos que ele parece real. Isso ocorre devido à natureza fotográfica do Cinema, da qual já falamos.

Quando essa preocupação com o disfarce e a naturalização da luz desaparece, o filme deve parecer para nós “menos cinematográfico”. Podemos dizer que um filme é muito teatral, musical ou pictórico. Ele será “teatral” se fizer um trabalho pouco natural com os atores, “musical” se tiver um ritmo escandalosamente apreensível. Essas metáforas- e não devemos cansar de acusar sempre esse caráter- vêm de um processo de inscrição do Cinema na história, a ter que conviver com as outras artes já consolidadas.

Assim, o expressionismo ganhou um certo sentido de pictórico, sintoma dessas batalhas travadas dentro da ordem do discurso, como diria Foucault. E uma vez reconhecido como sentido, e apenas como sentido, devemos, agora, tentar entendê-lo. Não poderemos nos ressentir de textos que se esforcem na mais detalhada comparação entre um quadro e um filme expressionista. Mas o que queremos dizer quando chamamos O Gabinete do Doutor Caligari de um “filme pictórico”?

Precisamente, o que viemos dizendo até aqui. Esse filme, narrado sobre o ponto de vista de um louco, além de atores com maquiagem e atuações pesadas e cenários- isso seria pouco para considerar um filme “pictórico”, o tornaria no máximo “teatral”- trabalha a luz de uma forma específica. Não há no trabalho com a luz qualquer esforço de naturalização, de fazer parecer real. Mas sim o contrário. O que importa aqui é , tornando-se, simultaneamente, forma e conteúdo, meio e mensagem. A luz assume sua função simbólica. A função primeira da pintura.

O que acontece no Cinema de Murnau, no entanto, é algo completamente diferente. Murnau é, muito mais, um cineasta do realismo do que do expressionismo. E soube muito bem usar em seus filmes a função dramática da luz. Ainda que seja compreensível seu título de cineasta-pintor.

Em A Última gargalhada, trabalhando em conjunto com o fotógrafo Karl Freund explora o quadro, equacionando genialmente as posições da câmera e dos objetos de cena. É notável sua preocupação com a composição das linhas do quadro, como podemos observar nas cenas que se passam dentro do Hotel Atlantic, cenário marcado pela simetria e o glamour que caracterizam uma concepção de metrópole, também explorada em outros filmes do diretor. (ver figura 02).

Mas não devemos perder de vista a oposição entre a função simbólica e a função dramática da luz. É ela que nos permite a mais clara distinção entre o que é a luz em um quadro ou em um filme, bem como o sentido pictórico ou cinematográfico que pode assumir um meio artístico ou outro.

Se o objetivo desse trabalho é realizar um paralelo entre as obras do pintor Caravaggio e os filmes de Murnau, feitas já as devidas ressalvas quanto ao que significa atribuir a um meio artístico terminologias de outro, deveríamos levantar duas hipóteses: ou é Murnau um cineasta “pictórico” ou é Caravaggio um pintor “cinematográfico”

Vimos que o realismo no Cinema está relacionado, primeiramente, a sua natureza fotográfica e, em segundo, e como conseqüência disso, por todo o esforço que empenha em neutralizar e disfarçar a luz na cena. Trata-se de um trabalho de “verossimilização” que persegue toda a história do Cinema e a maneira como esse meio artístico foi, ao longo do tempo, encontrando a sua linguagem própria.

Podemos localizar em Murnau toda a preocupação e eficiência em realizar essa tarefa. Não há luz em seus filmes que não seja muito bem justificada e integrada à cena. Seja por um abajur glamuroso que serve para compor o cenário pomposo do hotel, ou pela simples luz de um cigarro que confere um certo ar blasé a um dos funcionários do hotel. O que importa é a realidade específica do filme e não uma realidade qualquer. Não há luz ali que não agregue significado ao universo que o cineasta se propõe a construir.

Em a Última Gargalhada, são infinitos os exemplos que podemos citar. Há uma evolução da luz no filme, inicialmente muito mais “iluminado”, quando o protagonista ainda se sente importante na função de porteiro do hotel. A fotografia explora a profundidade de campo através das luzes que compõem a cidade à noite (ver figura 03). O ambiente é imponente, sedutor e o trabalho com a luz, criando diversos planos (o guarda do hotel no primeiro plano, o carismático protagonista no segundo, os prédios enormes que extrapolam o quadro, no último), criam o sentido pretendido de complexidade da metrópole.

À medida em que a narrativa evolui e o protagonista é demitido, recebendo o função de cuidar do banheiro do hotel, as luzes caem. Há a cena formidável dele adentrando a porta que dá para o banheiro para onde fora designado. A câmera fixa enquadra a porta, toda escura, com a governanta à esquerda do quadro, e registra o homem até ele desaparecer por completo. (ver figura 01) As toalhas que ele carrega fazem o devido contraste com o fundo negro do ambiente onde não há nenhum glamour. A função dramática da luz é usada em toda a sua potencialidade.

Em Fausto a função simbólica está presente. O filme começa e a luz é evidente. No entanto, a completa e intencional despreocupação com a neutralização da luz está associada a uma igual preocupação em situar a narrativa num terreno místico. Vemos criaturas estranhas, de aparência não-humana correndo em cima de cavalos em meio a uma densa fumaça e feixes de luz.

A luz, e seu negativo, a sombra, exercem uma espécie de função de objeto de cena. Parece, realmente, que estamos habitando o terreno do pictórico. Daí ser genial as luzes em forma de raio que invadem o quadro ao longo da seqüência, maneira pela qual aparece representada em longo período da história da Arte. (ver figura 04)

Em seguida temos um plano, contraplano das figuras místicas de um anjo e um demônio (ver figuras 05 e 06), respectivamente representadas por um jogo óbvio de luz e sombra. E aqui é necessário esvaziar essa palavra de qualquer carga pejorativa. Ela é óbvia porque é simbólica e integra o plano do transcendente. E todo símbolo místico deve ter sua carga de obviedade. Seria difícil compreender um anjo vestido de preto e envolto em sombras.

Murnau parece saber muito bem que só pode tematizar a luz dentro do filme, se for para representar algo que escapa o plano da matéria e da realidade humana. Caso contrário, ele transgrediria as leis da natureza do Cinema e revelaria o seu artifício. O que há de pictórico em Murnau não há de ser mais do que o pleno domínio das leis de dois universos diferentes que ele sabe perfeitamente não fazer confundir.



4. CARAVAGGIO

É bastante curioso que nos livros de história da Arte, as páginas dedicadas a esse pintor o abordem sempre a partir de sua personalidade e seus dizeres. Ficou famosa a frase em que disse no meio de um tribunal: “Não sou um pintor valentão, como me chamam, mas sim um pintor valente, isto é: que sabe pintar bem e imitar bem as coisas naturais”.

Curioso, num primeiro momento, mas inteiramente compreensível, logo mais adiante, quando observamos quadros de pintores contemporâneos seus. Só a explicação uma personalidade única que evocasse a idéia de gênio poderia dar uma satisfação minimamente satisfatória para a História do porquê as obras de Caravaggio eram tão imensamente diferentes de toda a demais produção artística de sua época.

No final dos século XVI, pintavam os maneiristas. “Essa corrente, caracterizada pela concentração na maneira, procurava efeitos bizarros que já apontavam para a arte moderna, como o alongamento das figuras humanas e os pontos de vista inusitados”. (ver figura 13).

O estilo naturalista de Caravaggio estava no pólo diametralmente oposto ao que acabamos de descrever. Seu modelo era a humanidade vulgar das feiras e tavernas: vendedores de frutas, músicos ambulantes, ciganos e prostitutas. Aproximava-se de Leonardo da Vinci, para quem a pintura era uma forma de especular a natureza.


Assim como em Murnau, é o trabalho com a luz que irá se destacar na obra de Caravaggio. O efeito de luz produzido nos seus quadros, no entanto, não nos deve parecer simplesmente belo, mas também gritante. Em todo o sentido do termo. A luz inunda a cena e antecipa um século o chiaroscuro de Rembrandt. (ver figura 10)

Suas telas deveriam ser usadas para curar a síndrome dos que, sem nenhum cuidado, quiseram forçar uma aproximação entre Cinema e Pintura. Elas mostram, da maneira mais clara possível, como o realismo na pintura nada tem a ver com uma necessidade de justificar as luzes- de fazê-la integrar a cena do modo mais natural possível- tão necessária ao Cinema.

Ao contrário, quanto mais descontextualizada, quanto mais se torna única apenas no contraste com o fundo negro, que parece elevar a narrativa a um espaço atemporal, maior realidade ganham as figuras ali representadas. Se pararmos para contemplar Davi e Golias (figura 07) ou A flagelação (figura 09) haveremos de ficar perplexos diante do realismo obtido.

Ou a luz que se esbate sobre as fisionomias para modelá-las corporeamente e envolvê-las numa aura imaterial, como em Vocação de São Mateus. (ver figura 08) A janela, situada na parede e fonte de luz nenhuma, parece uma ironia. Tudo se passa num botequim, em meio a um prosaico jogo de cartas. A luz parece servir apenas para mostrar o que interessa: as variedades das fisionomias, a indiferença do jovem que permanece absorto no jogo de cartas.

Poderíamos ver, até então, na luz, uma função simbólica quase que exclusiva. Suas fontes estão representadas e emanam de figuras de ordem sobrenatural e divina tais como anjos, Jesus Cristo e Maria. Ou da própria natureza, sob uma forma mais difusa. Mesmo quando a religião perde importância e a luz do sol passa, simplesmente, a entrar pela janela de uma casa qualquer, como nas conhecidas telas de Vermeer (ver figuras 11 e 12)- e isso já depois de Caravaggio- podemos verificar uma preocupação com a representação dessas fontes luminosas.

Se há algo de interessante nos quadros de Caravaggio é que essa luz não vem nem da natureza nem dessas figuras divinas. Aliás, muitas vezes elas não estão nem representadas, ou quando estão, apresentam a mais ordinária aparência humana.

Não temos revelada a fonte da luz. E disso decorre um deslocamento de sua função. Deixa de ser, predominantemente, simbólica para ser, fundamentalmente, dramática. Tal como no Cinema.

Caravaggio é um pintor cinematográfico. E os quase três séculos que separam sua morte do nascimento do Cinema não permitirão a ninguém dizer que, por mais correto que isso pareça, não passa de uma metáfora.




5. BIBLIOGRAFIA


AUMONT, J. O Olho interminável [Cinema e Pintura], Cosac & Naify, 1998

GOMBRICH, E.H A história da arte, LTC

FOCAULT, M. A ordem do discurso

EISNER, L. A tela demoníaca, Paz e Terra

CHARNEY, L. e SCHWARTZ, V. (orgs) O Cinema e a invenção da vida moderna, Cosac & Naify


6. FILMOGRAFIA


A Última Gargalhada (Der Letzte Mann), F.W Murnau,1924, Alemanha

Fausto (Faust - Eine Deutsche Volkssage), 1926, Alemanha

O Gabinete do doutor Caligari (Kabinett des Dr. Cligari), Wiene, Robert, 1919, Alemanha
[1] Um elemento artístico, o chiaroscuro (palavra italiana para "luz e sombra" ou, mais literalmente, «claro-escuro») é definido como um forte contraste entre luz e sombra. Também chamado de perspectiva tonal. Essa técnica foi criada por Leonardo da Vinci, pintor renascentista do século XV.

A Tropa na fronteira: Tropa de Elite e as novas fronteiras entre o real e a ficção

(Tropa de Elite, José Padilha, Brasil, 2007)

Talvez seja bastante sintomática a discussão que se impôs sobre o tom documental que haveria em Tropa de Elite.
Um bom tempo se gastou debatendo se um recurso, que permeia todo o filme, como a câmera na mão estaria a serviço de se construir um efeito de realidade ou de simplesmente imprimir ao filme tensão, o que, por sua vez, potencializaria seu caráter dramático e, por fim, de ficção. Mais uma vez, se coloca ficção e realidade em lados opostos. Continua-se a disputar o real. E o filme capitula essa disputa.
O diálogo com o documentário em Tropa de Elite é nítido e confesso. Longe, porém, de isso aplacar seu caráter de ficção, o que pode ser provado, principalmente, pela presença carismática de seu personagem principal, o Capitão Nascimento, interpretado pelo ator Wagner Moura. O filme é, intencionalmente, construído em cima dessa figura.
Não à toa, quem assiste aos extras do filme pode saber, mediante os depoimentos do diretor e montador, que inicialmente Tropa fora feito sob o ponto de vista de Matias, o policial negro interpretado por André Ramiro (que, na verdade, não é ator e nunca havia interpretado qualquer papel antes). O roteiro do filme foi assim concebido. No entanto, depois do material bruto ter sido capturado, foi-se decidido que isso seria modificado na montagem do filme e que a história passaria a ser narrada pelo personagem de Moura.
Todo o cuidado que se tem, desde a escolha do ator à minuciosa construção do personagem Capitão Nascimento, não atende, simplesmente, a uma necessidade de se documentar um ponto de vista (o do BOPE, no caso) ou “uma parte da realidade”. Um filme, e isso independe das boas ou más “intenções” de seus criadores, tem sempre “consciência” do seu caráter de ficção. Wagner Moura não é uma escolha inocente, no sentido em que sua presença direciona o discurso do filme para certas possibilidades de leitura, ao passo que exclui outras.
Se Capitão Nascimento fosse interpretado por André Ramiro, o ator negro que interpreta o personagem Matias, Tropa de Elite seria outro filme. Pode ser que Nascimento não virasse herói, ou que o personagem saísse menos ambíguo, despertasse mais raiva pelas suas truculências, ou mais compaixão pelos seus problemas psicológicos. Pode ser que, ao invés de fascista, José Padilha fosse acusado de racista.
O fato é que um filme, ou as possibilidades de sentidos que podem nele ser lidas, é construído a partir de uma série de escolhas, de equipes de profissionais que nele imprimem sentidos muito a despeito de suas “intenções”. Desde as marcações do roteiro, locações escolhidas, tipo de iluminação, movimentos de câmera e escolha do elenco, aos cortes, edição de som, trilha sonora, e outros processos de finalização.
Sem contar que todas essas questões ligadas a isso que chamamos de “linguagem cinematográfica” estão, ainda, submetidas às complexas relações de sentidos que existem dentro de uma sociedade que é dotada de memória histórica, social, cultural. Tropa de Elite não está no DVD pirata vendido na Uruguaiana, ou nas salas de cinema do Estação, mas antes num país no qual a pirataria existe, no qual Wagner Moura é estrela, simultaneamente, de cinema e de telenovela da Globo, e assim por diante.
O “fenômeno Tropa de Elite” não pode ser analisado sem que, no mínimo, esses dois elementos, linguagem cinematográfica e memória social, entrem na equação. Mas não em lados opostos- o primeiro indo em direção ao segundo numa relação simplificada filme/ espectador- mas sim desse modo de se relacionar “contemporâneo”, com o qual já começamos a nos acostumar, que age de forma interdependente, porosa e complexa. O pecado grave que se tornou falar de “autor” ou “intenção”.
Pecado grave, mas inevitável. Quando se toca na ferida é preciso apontar criminosos. E então José Padilha é fascista. Tropa de Elite “quer” investigar uma parte do “problema” que ainda não havia sido colocado em pauta: o papel que desempenha o consumidor da droga na cadeia do tráfico, a visão que a polícia tem do “problema”. Ao invés de, simplesmente, uma visão sobre a polícia, Tropa de Elite é um filme sobre a própria visão da polícia. Ao invés de filmar o jovem da favela coloca-se a câmera nas suas mãos. Talvez esteja nisso o que Tropa de Elite tem de mais “documental”.
Tropa de Elite é, em grande medida, um exercício de se dar uma voz. Ponto pacífico. Mas e se essa voz não é a do jovem invisibilizado pela sociedade que vê no “problema” a sua “solução”? Ou da mulher esquizofrênica que vive no meio do lixo, no meio de tudo que todo mundo quer ignorar? É tão fundamental quanto nobre isso, alguém que nos lembre, de alguma maneira, dos presídios e prostíbulos, das putas, travestis e doentes mentais. Alguém que nos lembre que, todos os dias, quem não é bonito, branco, magro, rico e cem por cento saudável sofre, e sofre muito.
Mas e se essa voz não for propriamente a de um invisível? Se essa voz não for a da vítima, mas a do algoz? Se essa voz não for a dos judeus, mas a de Hitler? Qual é o risco disso? O de descobrir que Hitler também é um pouco humano, também é um pouco vítima, de que o policial do BOPE também tem suas ambigüidades, maldades e fraquezas, e que, inclusive, você pode se identificar com elas. É quase tudo, ou tudo, uma questão de contextualização. E isso, sim, é muito difícil de aceitar.
E então Tropa de Elite poderia ser lido, simplesmente, como um filme que revela o desejo de uma sociedade. Talvez sua leitura como um filme fascista mostre um pouco isso. Porque quando o acusam de fascista o fazem apontando para a maneira como ele opõe BOPE e PM. Alega-se que sua intenção é mostrar a PM como uma instituição marcada pela completa degradação dos valores cívicos, ao passo que o BOPE seria colocado em um espaço puro onde não haveria corrupção.
Mas então deveríamos nos perguntar: Quem é que está realizando esse julgamento? Quem está optando por dar ao BOPE esse lugar de nobreza? Afinal de contas, mostrar que eles torturam e matam, isso o filme faz. Um filme que mostra que alguém faz isso está dando, “por si só”, um posto de herói para esse alguém? Os jornais falaram das intenções do autor, mas esqueceram de falar das do espectador. E assim continua a sociedade, sempre na sua busca (fascista?) pelos criminosos.
É nesse ponto, principalmente, que Tropa de Elite se torna um filme interessante. Talvez não seja um filme com um olhar fascista, mas a voz que ele dá, isso sim é evidente, é para um ponto de vista fascista. Acontece que mostrar um ponto de vista é diferente de adotá-lo. E também é certo que no momento em que essa voz é dada, outras não são ouvidas, o que explica o tratamento estereotipado que os estudantes das classes média e alta recebem no filme.
Agora, isso sim, podemos dizer de Tropa de Elite que sua “intenção” não é dar voz ao estudante universitário da Zona Sul. E isso irritou terrivelmente às classes médias, porque afinal de contas é chato ouvir “você é burro e idiota, porque seu pai tem grana e você estuda na PUC”. Mas também deve ser chato escutar, todos os dias, “você é um corrupto, filho da puta, que só quer se dar bem”, o discurso que a sociedade tem sempre na ponta da língua para falar da polícia.
Aí uma voz diz: “nesse sistema tem os corruptos, mas tem também os idiotas”, e nunca ninguém tinha pensado nos idiotas. Ainda que, claro, eles não sejam só isso. “Ele é corrupto, mas ganha mal”. “Ele é um alienado e passa o dia inteiro fumando maconha, mas a vida dele é vazia”. O exercício, que nunca se deveria perder de vista, de olhar o outro lado da moeda.
Se Tropa de Elite for lido como um filme que mostra o ponto de vista que um policial que é capitão do BOPE tem sobre o “sistema”, então a sociedade ganha. Porque precisamos, sim, ouvir esse ponto de vista para entendermos o “problema”. Agora, é claro, precisamos também ouvir o ponto de vista do estudante consumidor, o do traficante, o do político, o dos representantes das empresas fabricantes de armas que estão lá na Suíça e, provavelmente, muitos outros ainda que compõem o tal do “sistema”.
Tropa de Elite tem um efeito colateral de mostrar que o “sistema” é um somatório desigual de pontos de vista, que se impõem uns sobre os outros, ora com a força do dinheiro, ora com a força das armas.
O filme desestabiliza o imaginário social, que não fazia mais do que reforçar uma equação quase indiscutida até então: polícia corrupta / traficante meio vítima, meio algoz/ elite vítima ou hipócrita. Sugere uma polícia corrupta sim, mas uma parte dela que não é exatamente corrupta, mas fascista, que é capaz de legitimar a tortura sob o argumento do bem-estar social (o BOPE), e uma elite idiota.
E ser idiota é bem diferente de ser vítima, simplesmente, como sugerem os meios de comunicação da informação. Uma caracterização que há algum tempo ajuda a legitimar o discurso e as políticas de segurança pública na cidade. Da mesma maneira, ser idiota é diferente também do imaginário sugerido pelas críticas de esquerda que caracterizaram uma elite vilã e hipócrita. O vilão, de certa forma, sabe que o que está fazendo não é “certo”. Mas faz mesmo assim. Enquanto que o idiota simplesmente não sabe o que está fazendo.
Em Quanto vale ou é por quilo, os empresários ricos que tem suas ONGs e lucram fazendo marketing social sabem muito bem que sua ética de solidariedade é apenas uma fachada. Mas simplesmente desdenham isso, são hipócritas. Enquanto que o estudante rico que tem uma ONG na favela em Tropa de Elite “acredita” no trabalho social que está fazendo. Quem não acredita é o telespectador. O que, automaticamente, os transforma ou em ingênuos (no caso da personagem Maria) ou em idiotas, no caso dos demais.
Em Tropa de Elite o estudante rico é um alienado que resume sua “consciência social” a ter uma ONG na favela enquanto confraterniza com traficantes. Enche a boca para falar mal da polícia corrupta enquanto compra seu lote cotidiano de maconha para revender na faculdade e curtir nas festinhas da Zona Sul. Lê as teorias supostamente “críticas” de Foucault e Deleuze (fumando um baseado, é claro), mas é incapaz sequer de reconhecer os graves problemas sociais da cidade em que vive, ignorando ainda sua própria função na cadeia do tráfico, o papel que cumpre no “sistema”.
Já a polícia militar, diferente do jovem consumidor das elites, tem um certo conhecimento desse “sistema”. No entanto, mantém com ele uma relação de promiscuidade e permanente negociação, usando do seu funcionamento para extrair benefícios próprios. Pega “arrego” com traficante, faz acordo com político, sem contar com os pequenos “acertos” do dia-a-dia com o cidadão comum. Basicamente, encarna o individualismo do “salve-se quem puder” e a completa falência de um projeto de sociedade carioca.
Por fim, há quem conheça muito bem esse “sistema”, e com uma clareza e distanciamento tão profundos que não se deixa contaminar por ele. Segundo esse olhar, polícia e sociedade mantêm relações promíscuas, o Rio de Janeiro está em guerra porque a polícia militar não reprime o tráfico como deveria, porque dá “arrego” para traficante e não autua devidamente o usuário rico da Zona Sul. A solução não é negociar com o crime, mas sim acabar com ele.
Existe uma missão. E “missão dada é missão cumprida”. Pelo BOPE.
E assim, o “sistema” se perpetua. Conhecendo-o ou não, se faz parte dele, não há como se estar “fora” do “sistema”. O que se faz, então? Como se mantêm a sociedade longe do perigo da violência e das armas? Todas as grades não foram suficientes para dar conta de todo o medo, para fechar todas as brechas. Então nos resta o extermínio (?). Acabamos com os traficantes, acabamos com os policiais corruptos, acabamos com os jovens que compram as drogas e pronto, dessa forma teremos um pouco de paz.
Tropa de Elite tem algo de assustador. Porque revela uma sociedade que, sem perceber, adotou a ideologia do extermínio, que se perdeu no meio do “sistema”, seja por não saber quem se é dentro dele ou porque só vê a si próprio dentro dele. O Capitão Nascimento herói revele, talvez, não exatamente uma ideologia fascista, mas uma ideologia do auto-extermínio, o desejo que nasce dentro de uma sociedade de acabar consigo mesma.
Pode ser interessante observar que num país marcado pela total indiferença política, pelo total esquecimento do passado, no qual Jarbas Passarinho dá, sem nenhum pudor, um depoimento dizendo que “é preciso virar a página, temos que esquecer os nossos mortos”, no qual a polícia massacra covardemente centenas de prisioneiros no Carandiru e no dia seguinte implode-se o presídio para que ninguém lembre do acontecido, que um filme como Tropa de Elite torne-se o filme no ano.
Interessante que ele atravesse de forma tão oblíqua o sistema de distribuição brasileiro de filmes, que ele revele, de uma forma tão sutil quanto escandalosa, o mesmo caráter excludente do processo de produção, distribuição e exibição de filmes existente na sociedade que se propõe retratar.
Interessante que seu projeto inicial, seu método de realização, sua urgência em falar de algo que não pode mais ser ignorado revelem um caráter extremamente documental. Mas que a maneira que encontrou para chegar à sociedade tenha sido a de um discurso ficcional.
Interessante também que, dessa maneira, revele uma sociedade na qual as fronteiras entre o real e a ficção estão cada vez mais nebulosas. Uma sociedade que, sem perceber, está chamando de realidade só uma parte dela mesma. Uma sociedade que ainda não cansou de colocar grades para separar ela dela mesma, para dividir, sempre, tudo em dois.

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O tempo de cada um

(O Céu de Suely, Karim Aïnouz, 2006)
O novo filme de de Karim Aïnouz é um filme complexo sobre o tempo e o amor. Mais precisamente, sobre a relação entre eles e os desencontros a que um submete o outro. O amor submetido ao tempo é uma idéia relativamente fácil de se compreender, mas o contrário é algo extremamente complexo, e é o partilhar dessa sensação que O Céu de Suely nos traz de uma maneira brilhante.
O filme começa com uma linda seqüência mostrando um casal dançando abraçado sobre um céu aberto. A cena, filmada em super-8, localiza aquele tempo no passado, num tempo que já não é mais. Uma voz em off confirma essa sensação, acrescentando a ela uma certa melancolia.
Logo em seguida, somos transportados para outro tempo. De início, não sabemos, ao certo, se um futuro ou um passado em relação ao anterior. Mas a verdade é que não importa, porque o tempo da personagem que acompanharemos dali pra frente é aquele que vimos ficar pra trás.
Desde o início sabemos que Mateus não irá ao encontro de Hermila, e a sensação que se instala desde sempre na atmosfera de O Céu de Suely é de uma profunda melancolia. Sabemos que Mateus não virá, que o tempo não volta e que o futuro não será como se gostaria.
Surge então a necessidade de se solucionar esses vazios. O vazio deixado pelo amor, pela quebra da ilusão, pela ruptura do tempo. A personagem começa a buscar a supressão dessas ausências, através da fuga, da substituição. Vemos Hermila dançando nos bailes da cidade, conquistando outros homens, cuidando do filho, conversando e fumando com as amigas. Há uma melancolia profunda em cada um desses movimentos, uma placidez, uma atmosfera densa como a sensação do calor que é construída na narrativa. (A cena em que Hermila está encostada com a amiga passando gelo pelo corpo chega a ser paralisante pela quantidade de sensações que mobiliza: o sufocamento da tristeza e do calor, uma certa insinuação de erotismo, um desejo que não se sabe da onde e para onde vem e vai).
Vemos a personagem dominada por uma dor imensa. Perpassa o filme uma sensação de absoluta clausura. Além das festas, há a possibilidade da fuga pela viagem para o “lugar mais longe que tiver”, o apelo das amigas para a diversão, João, que se apaixona por Hermila. Mas vemos que nenhum desses artifícios a resgata.
Surge o argumento central do filme: a idéia de se rifar. Há mais do que uma necessidade de fuga do passado, das lembranças; impõe-se um desejo de fuga do corpo. Na verdade, um desejo de se descobrir do que fugir: se do passado, do presente, de Mateus, ou de si própria.
Hermila transforma o seu entorno: mobiliza os homens a sua volta, que a desejam, a agridem, se apaixonam por ela; mobiliza as mulheres, que a admiram, invejam, repreendem (no caso da vó quando descobre a história da rifa). Mas Hermila, ao contrário, não é afetada por nenhum desses agentes. Há algo que a agride que é de uma violência extrema, mas que não está dentro de um universo visível. Algo que está dentro da personagem e que contamina tudo o que ela (vemos). Vemos através do olhar de Hermila.
O Céu de Suely é um filme sobre a brutalidade de se viver um tempo alienado, um tempo subjetivo descolado do tempo das coisas; de estar imerso num tempo interior diferente do tempo em que os fatos se passam.
No final, há algo de extremamente pungente. Não se vê no amor a possibilidade de colar esses dois tempos. Na cena final do filme, quando vemos Hermila indo embora no ônibus, vemos também a moto que se aproxima e que sabemos ser de João, mas que, por um instante pensamos poder ser de Mateus. Esperamos então a redenção, o encontro entre os dois tempos (o tempo em suspensão do super-8 e o do restante das imagens; o tempo do mundo e o da personagem). Mas logo vemos o capacete se abrir e vemos que é João, correndo atrás do amor que nunca consegue ter.
Se há algo de profundamente triste do filme de Karin é que o amor não serve para unir os tempos, para sintonizá-los. Mas ele é, sim, é parte do desencontro.
E então Hermila segue no ônibus sozinha, rumo a um futuro no qual talvez possa encontrar e atualizar seu tempo. Enquanto que João tem de voltar porque não pode dividir um tempo com Hermila. Ele volta para o passado enquanto ela vai para o futuro. E enquanto Mateus continua em SP, num presente ausente em relação à Hermila.
No final do filme, os três terminam em lugares/espaços deferentes. Mas há a esperança de um tempo presente. Uma esperança de Hermila encontrar o seu presente. Uma esperança que, no entanto, não se encontra no amor. Mas numa busca pessoal que aponta para o futuro.

A queda do muro e a crise dos paradigmas: o "sistema" e o "Homem de ferro"

De quem é culpa de você estar doente e não poder ser atendido em nenhum hospital, do ar poluído que você está respirando, da água no seu planeta estar acabando, do seu celular parar de funcionar de repente, da sua conta de luz vir superfaturada, de você não poder andar pela cidade sem medo de ser assaltado, da polícia do seu país ser corrupta, de você passar horas no seu dia enfiado num trânsito, das guerras civis e doenças na África, do terrorismo estar se espalhando pelo mundo, dos alimentos que você come serem cancerígenos, de você não ter mais emprego?
Meu pai caiu na luta armada para brigar contra a ditadura que se instalou no Brasil em 1964. Havia um vilão muito claro: a direita, os militares, os americanos ganhando dinheiro com a venda das armas em cima do terceiro mundo. Havia o pensamento de esquerda, os entusiastas do comunismo, do socialismo, de Fidel, de Che. Era tudo uma questão de ser ou não ser capitalista. Podia não se ser capitalista.
Mas o muro de Berlim caiu, o socialismo se desmantelou, as ditaduras foram quase todas derrubadas. Não há mais como se responder de que lado se está, porque não há mais lados. Há o “sistema”. E ou se está dentro dele. Ou dentro dele.Viver sem culpados, com certeza é mais difícil. E o “sistema” não tem culpados. Mas também não tem inocentes. Quando o homem de ferro percebeu que fabricar armas era algo terrível para a humanidade e resolveu fechar sua companhia, o Iraque já estava tomado de tanques e metralhadoras. Quando lhe exigiram explicações, ele responde da melhor forma possível: "Eu não sou a minha empresa".
Mas o “sistema” tem lógica própria. E o homem pode desistir de sua empresa, mas isso não significa que ela vá parar de funcionar. Estar no “sistema” é não poder escolher lados, é não poder estar “fora”, é não poder fechar a empresa. É a crítica de Hollywood contra o capitalismo usando um herói de história em quadrinhos poder ser mais anti- “sistema” do que os manifestos contra a globalização, os jovens vestindo camiseta do Cheguevara e explodindo as fachadas dos bancos e McDonalds.
Viver no “sistema” é uma tarefa difícil. Não temos ditadura para derrubar, não temos militar para xingar, xingamos a gravação da operadora de telefonia. E ela nunca revida. Mas faz você desistir de cancelar a sua conta. Vitória da empresa? Mas quem é a empresa? O capital não é aberto? Não são milhares de ações e milhares de donos? E as ações não estão nos bancos? E quem faz os bancos? E quem trabalha nele? E quem tem conta nele? E, no final as contas, você não continua com a sua conta no banco e a sua linha de celular? Você xingou, xingou, e, no final das contas, desistiu de cancelar sua conta.
Em Condor, aquele documentário sobre as ditaduras na América Latina, um dos depoentes diz uma certa hora que o objetivo do regime, dos ditadores torturadores era “fazer você passar para o lado deles, era transformar você num colaborador”. O Capitalismo é um sistema de torturados. Porque só tem colaborador.
Viver num mundo repleto de crimes sem autores é a angústia da minha geração. Eu já desisti de sair da cidade, de ir para o mato montar minha comunidade hippie, de ir viver de paz e amor e longe das relações de poder. Afinal, o muro de Berlim caiu e eu percebi que posso caminhar o quanto for que não vou achar o lado de lá.O melhor que podemos fazer é tentarmos entender o mundo que vivemos. Esse blog tem essa função. É para ser um espaço de discussão sobre o mundo, sobre toda e qualquer coisa, sem distinção, tudo e todos são bem-vindos, os de direita, os de esquerda, os simpatizantes de Che, os simpatizantes do homem de ferro, os verdes, os que desistiram de ir para a comunidade hippie, os que foram, mas que levaram seu laptop!
Vamos tentar ser honestos, tentar parar de procurar os criminosos, tentar entender o ponto de vista do outro. Parar de fazer CPI, de chamar o cara de fascista só porque ele tocou na ferida. Ao invés disso, vamos tentar entender a ferida. Vamos tentar entender a nós mesmos. E o outro.
Afinal, estamos juntos nessa, todo mundo faz parte do “sistema”. Talvez os índices de suicídio na Suécia diminuam quando o IDH do Sudão melhorar. Talvez haja menos homens bombas quando houver menos homens fardados. Não sabemos. Vamos olhar para o “sistema” para poder entendê-lo. E falar sobre ele aqui, nesse blog especialmente dedicado e ele.
Acredito, dessa forma, estar combatendo as novas formas de ditaduras que ainda estão sem nome. Acredito, dessa forma, estar exercendo uma nova forma de cidadania, ainda não ensinada nas escolas.